Missão do jornalismo

A missão do jornalismo e os (des) prazeres da reportagem


O telefone toca. São exatamente 5h10, um frio cortante envolve todo quarto. Penso quem poderia ser àquela hora. Me recuso a atender, me ajeito nas cobertas e espero o maldito parar de berrar. Não tem jeito, o toque é insistente e incessante. À contra gosto, atendo. Do outro lado um amigo pede desculpas, mas avisa de um atropelamento fatal na Régis Bittencourt.

“Edu, vem pra cá, tá cheio de gente. A família tá chocada. Acho que dá uma matéria”. Entre as poucas palavras que eu consegui balbuciar embriagado pelo sono, minha esposa acorda. Antevendo o que viria pela frente, foi direta e disse: “Se veste e vai logo”. Quando saio, o porteiro ainda brinca: “mais um chamado, seu Eduardo?”. É, mais um chamado.

No curto trajeto até o local do acidente, no centro de Taboão da Serra, meu celular toca mais duas vezes, outras pessoas avisando sobre a tragédia. Penso comigo mesmo: “o que vou ganhar com isso? Pra que estou saindo de casa com esse frio horrível? A troco de que? ”.

Chego ao local junto com a Polícia Rodoviária Federal, a cena é chocante. O motorista que atropelou o rapaz está em choque. Amigos e familiares choram. Curiosos espiam, tiram fotos com o celular. Carros e motos diminuem a velocidade, não pela vítima, mas pela mórbida vontade de observar mais um cadáver.

Matéria sobre tragédias são sempre insossas, mas rendem um bom público de leitores. A violência choca e sinto que as pessoas leem e pensam: “ainda bem que não sou eu”. Em menos de uma hora apuro todas as informações, tiro as fotos e dou no pé. Impossível, mas o telefone toca e um contato avisa: “mais um atropelamento, desta vez no Embu, com duas vítimas”.

Já sem sono, com a adrenalina a milhão, decido encarar mais uma cena triste. No quilometro 280 da Régis Bittencourt tenho a noção exata porque a estrada é chamada de “Rodovia da Morte”. Vou poupar todos vocês, impossível descrever o que vi sem parecer sanguinário ou sensacionalista.

No caminho de casa me deparo com outras pautas. A cabeça gira a mil, não dá tempo de escrever tudo, de registrar tudo o que acontece na região. A vontade é maior do que a razão: paro e fotografo tudo. Anoto no caderno já sem páginas em branco, um dia essas ideias vão virar matérias.

Apesar de ter compartilhado tanto sofrimento, chego em casa cheio de energia. Minha mulher não acredita, nem procuro a cama, vou para o computador escrever, preciso tirar aquilo tudo de mim. Até porque a matéria, a informação, não me pertence. Ela precisa ser publicada, precisa servir de alerta, de aviso, ou seja lá para o que ela é escrita. Ela, a notícia, tem vida própria, precisa chegar aos leitores e encontra, nem que seja sozinha, a forma de ser repercutida.

Quem escolhe um dia ser jornalista, não importa onde, tem que saber que escolheu uma missão e não apenas uma profissão. Essa coisa de pular da cama quando um avião cai, um homem é executado ou um esquema fraudulento é negociado, faz parte da escolha. E quem ama ser jornalista, até pode reclamar, mas só por charme.

O jornalista, formado ou não, sabe que o cargo mais importante na “cadeia da informação” é o do repórter que precisa amar a rua, amar a madrugada e amar a história dos seus personagens. As notícias são um scanner da vida das pessoas. O cheiro de sangue, o sol e a chuva, a lama e o barro, a dor e a alegria, são apenas coadjuvantes nessa maluca necessidade de informar.

E para quem vê o jornalismo (ou alguma páginas impressas que alguns chamam de jornal) como ganha-pão, vai sempre comer as migalhas, porque o bolo mesmo é a satisfação de levar a informação até o leitor. O resto é resto.



Por Eduardo Toledo
Da Redação do Portal O Taboanense